terça-feira, 19 de maio de 2015

Um Rio chamado Tempo, uma Casa chamada Terra, Mia Couto


Título: Um Rio chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra
Escritor:  Mia Couto (Moçambique)
Ano de Publicação: 2002
Editora: Companhia das Letras
Gênero: Realismo Fantástico/Drama
Páginas: 262
Nota: ♥ ♥ ♥ ♥ 

Na história, Marianinho, um estudante universitário, retorna a sua cidade natal - a ilha de Luar-do-Chão - para o enterro do avô. Afastado das tradições locais há muitos anos, Marianinho vê-se repentinamente obrigado a enfrentar confusos dramas familiares, sociais e políticos, que são agravados por alguns eventos de natureza mística.

Falar de Um Rio chamado Tempo, uma Casa chamada Terra não é uma tarefa fácil. Mia Couto dá a sua narrativa um tom fantasioso que muito se assemelha ao Realismo Fantástico Latino-Americano do Século XX, eternizado por Gabriel García Marquez em "Cem Anos de Solidão". Aqui o real e o impossível misturam-se, as superstições concretizam-se e as intrincadas tradições moçambicanas justificam-se. Paradoxalmente, esses toques de fantasia tornam a realidade ainda mais palpável, já que ela vem carregada de sentimentos, de história e de vida. Ao narrar um acidente de barco, por exemplo, Mia Couto escreve:
As árvores todas se agitaram e, de repente, num só movimento, seus troncos rodaram e se viraram para o poente.
É a natureza reagindo aos acontecimentos, tornando-os ainda mais trágicos para o leitor. Nesse universo criado pelo escritor moçambicano, mortos viram água ou recusam-se a morrer, a chuva pára de cair do céu quando alguém esconde um terrível segredo ou a terra recusa-se a abrir para receber os mortos. E nada disso causa estranheza aos habitantes locais, que conhecem os rituais e as tradições e aprenderam a respeitar a natureza. Aliás, esse é um dos grandes temas de Um Rio chamado Tempo, uma Casa chamada Terra: o respeito - a quase veneração - ao rio, à terra e às árvores, sob pena de graves punições (sobre)naturais. Marianinho explica com suas próprias palavras:
Estou na margem do rio, contemplando as mulheres que se banham. Respeitam a tradição: antes de entrar na água, cada uma delas pede permissão ao rio:
- Dá licença?
Outra característica marcante dessa obra de Mia Couto é o destaque que ele dá à linguagem. O texto é fluido, em muitos momentos poético. São comuns rimas, trocadilhos, pequenas brincadeiras com as palavras. Em certo momento percebemos o quanto a realidade e a linguagem estão interconectadas. O trator local chama-se "ganda-ganda" pelo barulho que faz ao deslocar-se; os mortos são "plantados", e não enterrados, já que pela tradição local os mortos nunca morrem realmente, permanecendo tão vivos quanto as plantas; o túmulo do chefe da família é chamado "Yindlhu", a mesma palavra que designa a casa dos vivos.

A família é outro tema central. Marianinho volta para casa, mas não se sente em casa. Uma frase de seu avô ecoa em sua cabeça: "quem parte de um lugar tão pequeno, mesmo que volte, nunca retorna". Ao cruzar o rio para chegar a Luar-do-Chão, ele cruzou a divisória de dois mundos completamente diferentes: um tradicional, repleto de misticismo; outro moderno e racional. É só através da família que ele consegue cruzar essa barreira invisível. E essa família não pode ser racionalmente compreendida; é preciso vivenciá-la em sua complexidade, em seus segredos, em sua beleza e em sua feiura. 

Essa comunidade extremamente apegada à natureza e à tradição é, por um lado, bela em sua idiossincrasias, mas por outro lado é também patriarcal e machista. A história de Mariavilhosa, a mãe de Marianinho, é exemplo disso. Mia Couto nos apresenta a mulheres fortes e decididas, mas que foram esmagadas pelas tradições locais. Essa é um sociedade em que uma viúva, sem a proteção de um homem, pode perder todas as suas posses para parentes distantes; em que uma esposa assiste calada o desfile de amantes de seu marido; em que uma mulher que sofreu um aborto é considerada impura. Tudo que é tradicional tende também a ser injusto.

Encerro minha resenha (já longa) por aqui, mas com grande pesar, já que poderia passar horas escrevendo sobre esse livro. Eu poderia falar ainda sobre seus complexos personagens, sobre a colonização africana, sobre o capitalismo ou sobre desmandos políticos, mas é mais fácil dizer que esse é o tipo de livro que fala sobre tudo e que nunca se esgota. Ainda preciso deixar claro que recomendo essa leitura com todas as minhas forças?     

       



14 comentários:

  1. Anotado. Fiquei com vontade de ler Mia Couto outra vez.

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    1. Você leu o que dele, Cláudia? Também quero ler mais coisas dele.

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    2. O Fio das Missangas. Livro de contos. E já li alguns livros infantis.

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    3. Já me indicaram esse livro de contos dele, Cláudia. Vou anotar aqui na minha lista.
      Beijo! E obrigada pela dica.

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  2. Eduarda, acabo de conhecer o seu blog (vi seu comentário no Lulunettes e não resisti), e que surpresa agradável! Eu sempre soube que preciso tirar o meu atraso e ler Mia Couto. Sei que é um pequeno absurdo nunca ter lido nenhum livro dele, principalmente porque seu estilo me parece ser exatamente o tipo que me agrada. Mas sei lá, acabei nunca dando chance a ele, e você veio me lembrar disso. Agora pretendo comprar um livro dele, e estou até bem interessada em comprar o desta resenha. Você acha que seria uma boa, ou me indicaria outro livro dele para começar?
    Aproveito e te convido pra conhecer o meu blog também, seria um prazer te ver por lá: www.literasutra.com
    Um abraço!

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    1. Monalisa, muito obrigada pelo comentário carinhoso ^_^
      Então... Esse foi meu primeiro Mia Couto também, e considerei uma ótima introdução. Pretendo ler em seguida Terra Sonâmbula e O Outro Pé da Sereia, que também são muito elogiados.
      Beijo!

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  3. Quase li esse livro para o desafio de maio, acredita? O tema era "livros originalmente escritos em língua portuguesa". Acabei ficando com o "Terra Sonâmbula", porque vai rolar um clube do livro em junho, e já quis aproveitar o mesmo livro. Foi meu primeiro do Mia Couto e adorei. Sua resenha descreve perfeitamente o ambiente do mundo criado pelo autor: cheio de tradições e eventos místicos, da força da natureza, de mulheres fortes que são esmagadas pelo machismo enraizado naquelas pessoas. Ele pinta quadros muito bonitos com as palavras, né? Quero ler mais coisas dele.
    beijo!

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    1. Estamos sintonizadas então, Michelle. Acho que Terra Sonâmbula será meu próximo dele ^_^
      Quanto ao machismo, ainda preciso conversar com alguém sobre isso... Não entendi muito bem a posição do Mia Couto. Senti que o personagem principal desse livro, o Marianinho, tem uma certa admiração pelas conquistas amorosas do avô, mesmo que isso tenha resultado na infelicidade da avó. O que acha?
      Beijo!

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    2. Acho que o Mia Couto, como bom observador, retrata a realidade (com tintas poéticas, mas uma realidade dura e muitas vezes revoltante). As mulheres de seus livros realizam grandes feitos, têm ótimas ideias, muitos desejos, mas são tolhidas pelas tradições, pelo pensamento arcaico e enraizado que condena e pune todos que ousam ser diferentes (principalmente se forem do sexo feminino - visto pela sociedade em geral como secundário). Oprimidas e resignadas, elas acabam aceitando seus destinos infelizes.
      E você, o que pensa disso tudo?
      Beijo

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    3. Eu concordo, Michelle. O Mia Couto fala das coisas horríveis que estão acontecendo com essas mulheres de um jeito poético. A história é contada pelo ponto de vista de um observador moralmente neutro (Marianinho), mas a opressão, a injustiça, o machismo estão lá. E ao mesmo tempo há beleza na narrativa porque essas mulheres sobrevivem, desabafam, questionam e lutam, mesmo que não vençam. Só fiquei com o pé atrás com a admiração que o Marianho tem pelo avô pegador, mesmo acompanhando todo o sofrimento da avó.

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  4. Do Mia Couto, li Terra Sonâmbula, O outro pé da sereia e Estórias Abensonhadas (contos) e gostei demais. Os dois primeiros são bastante profundos e cheios de metáforas, desses livros que precisamos reler algumas vezes para entender o seu sentido e ganhar ainda mais conhecimentos acerca dos temas explorados pelo autor, não que os contos exijam menos dedicação. Ia ler O voo do flamingo, mas com sua resenha, acho que vou ler esse primeiro.
    Parabéns pela parceria com a Rádio Londres.

    Boas Leituras!

    Beijos

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    1. Eu também senti isso com esse livro, Flávia. É um daqueles livros que podem (e devem) ser relidos para uma melhor compreensão dos temas. Já anotei todas as suas dicas! Acho que meu próximo dele vai ser Terra Sonâmbula.
      Beijo! ^_^

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  5. Eduarda, este está na minha lista!
    Meu preferido dele é Terra Sonâmbula, que nossa amiga Michelle ja comentou aí em cima. Aliás, o clube de leitura dele foi delicioso!
    Recomendo muito também :)
    Adorei a resenha
    Bjks mil

    www.blogdaclauo.com

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  6. Já li "Terra Sonâmbula" e adorei, mas escolhi "Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra" para fazer minha monografia. Adorei a resenha, bem clara e objetiva! Teria algo para falar sobre as metáforas existentes no livro?
    beijinhos!

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